Bolsonaro e os livros de colorir

Dias atrás, acompanhei, por pura curiosidade mórbida, uma discussão que se seguiu no Facebook depois que alguém compartilhou uma entrevista com um professor doutor de filosofia com ao menos oito livros de referência publicados sobre cidadania e que se dizia preocupado com os rumos do governo Bolsonaro.

No primeiro comentário, um autodeclarado empreendedor questionava o que, além dos livros, o intelectual havia feito pelo Brasil. Na mensagem, dizia que ele, por exemplo, empregava 16 pessoas em seu sua empresa. E que o mal do país era gente como o entrevistado, que muito escrevia e pouco ajudava.

Não é difícil questionar o argumento, um dos muitos baseados numa falsa dicotomia entre saber e produzir, mas para isso é necessário escrever um pouco mais de 280 caracteres. Difícil é saber como essa conversa tem eco nas ágoras das discussões online.

Um esboço de resposta levará à conclusão de que não foi Jair Bolsonaro quem começou a conversa. Ele, em vez disso, é resultado direto de uma certa visão de mundo que identifica nos livros (e peças, e exposições e filmes que não os de ação) uma grande perda de tempo sob o signo da “ideologia”. Entre os livros, nenhum é tão citado como entrave do que a Constituição.

Por essa visão, os livros contêm uma espécie de inibidor de conduta e apetite: em vez de agir, o sujeito se depara com uma série de questionamentos, condicionantes morais e conclusões melancólicas sobre o mundo e o seu fim inevitável. O homem de ação, por sua vez, reduz a distância entre pensamento e realidade deixando para depois as consequências de seus empreendimentos.

Parte das nossas tragédia, que fingimos serem desastres naturais, vem dessa distância encurtada entre pensar, planejar e fazer. Vide a forma como décadas de progresso concretaram nossas cidades e mudaram o curso dos córregos que se voltam contra nós em dias de chuva. Vide a falta de inteligência de quem, no afã de lucrar, ergueu barragens próximas de cidades que fatalmente serão engolidas na primeira rachadura.

A chegada de Bolsonaro ao poder é o triunfo desse pensamento revolto, intempestivo, curto e limitado sobre ação e reflexão. (Lula também se gabava da baixa escolaridade, mas a seu favor compensava a limitação incentivando a construção de universidades, não atacando quem trabalhava nelas).

Já escrevi e volto ao assunto neste espaço: tenho muita curiosidade em saber que tipo de páginas, além da biografia de um torturador confesso, foram capazes de tocar o presidente e fazê-lo refletir, se olhar ao espelho e se indagar sobre os limites e contradições da experiência humana — toda ela cinza, confusa e distante de um esqueminha sobre bons e maus. Adoraria saber.

A hipótese mais provável é: nenhuma.

Ainda assim, o presidente segue disposto a criticar o que desconhece, como já fez com o cinema há poucos dias.

Na sexta-feira, por exemplo, o capitão defendeu que é necessário “facilitar a vida de quem produz, fazer com que essa garotada aqui tenha um ensino que vá ser útil lá na frente”.

Parecia o internauta do primeiro parágrafo, mas era só o presidente da República tentando separar o útil do inútil quando o assunto, que não entende, é educação.

Para ele, os livros, hoje em dia, são um amontoado de muita coisa escrita. “Tem que suavizar aquilo. Em falar em suavizar, estudei na cartilha ‘Caminho Suave’, você nunca esquece. Não esse lixo que, como regra, está aí. Essa ideologia de Paulo Freire”, disse Bolsonaro, alvejando seu alvo favorito — e que provavelmente nunca leu.

Ele prometeu que, a partir de 2021, “todos os livros serão nossos, feitos por nós” e garantiu: “Os pais vão vibrar. Vai estar lá a bandeira do Brasil na capa. Vai ter lá o hino nacional”.

Serão livros de colorir?

Bolsonaro inova querendo ensinar a criança a não ler desde cedo.

Quem o vê falando imagina que o grande problema do país é o excesso de leitura. Na realidade, segundo a pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, de 2016, o brasileiro lê em média apenas 2,43 livros por ano.

Nesse país, três em cada dez cidadãos nunca comprou um livro e a tendência é que a situação se agrave, já que apenas 985 dos 5.570 municípios brasileiros (17,7%) possuem ao menos uma livraria atualmente, segundo o IBGE. Em 2001, eram 42,7% (um número já vergonhoso).

Um dos entraves da democratização da leitura sempre foi social, embora quem venha de fora se assuste com o desprezo pelos livros da nossa elite e classe média alta. Esse entrave diz respeito ao acesso a boas escolas, bons professores, boas bibliotecas, boas livrarias. Tudo isso persiste, mas é agora dinamizado por um presidente que não gosta dos “amontoados de palavras” no auge da economia da atenção.

Na era digital, quem tem acesso aos livros tem a atenção disputada por produtores de conteúdo de todo tipo, a começar pelas redes sociais. Tempo e silêncio, dois ingredientes fundamentais para uma boa leitura, são hoje artigo raro em rotinas hiperconectadas e hiperestimuladas.

Só que, quanto menos tempo temos para leitura, menos tempo temos também para pensar; quanto menos tempo para pensar, mais rasas e limítrofes as reflexões sobre a própria realidade, amordaçada e encarcerada em frases feitas que servem como um mausoléu da ignorância. Essa ignorância, vale dizer, é matéria prima amorfa e manipulável para gurus de todo tipo, inclusive os que compensam com esperteza e violência o que não têm em fundamentação.

Tal incapacidade cognitiva, que despreza leitura e reflexão, observação e disposição em relacionar fatos e eventos, teses e antíteses, desemboca no retrato apontado em outra pesquisa, essa do instituto britânico Ipsos Mori, segundo o qual os brasileiros só ficam à frente dos sul-africanos em um ranking de 38 países sobre percepção equivocada da realidade — um terreno fértil para o perigoso dueto da mentira e do controle de corações e mentes.

O nosso fracasso é um quarto escuro que queremos iluminar fechando as últimas janelas. Quer que desenhe?

Fonte: Yahoo Notícias (Blog Matheus Pichonelli)

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